Na Sete de Setembro, o adeus à ruazinha verde

Por conta de umas questões paralelas (ao grande Chico Buarque peço emprestada a expressão):

  Ando frequentando bastante as ruas do Centro do Rio. Mais especificamente, a Rua Sete de Setembro, talvez no seu trecho menos nobre, aquele que fica entre a Praça Tiradentes e o caminho que leva ao Largo da Carioca. São casas do início do século XX, que nada têm a ver com o projeto urbanístico idealizado por Le Corbusier, arquiteto franco-suíço. Nos anos 30, junto com colegas, Le Corbusier lançou “A Carta de Atenas”, uma espécie de sugestões sobre um urbanismo que poderia levar bem-estar e qualidade de vida. Mais espaço entre as construções era a regra básica.

Naquele trecho da Sete de Setembro, as teorias Corbusianas não foram empregadas. É tudo espremido, parede com parede, a ponto de não se conseguir implementar energia solar porque as construções roubam a luz solar umas das outras. Mas algumas casas têm lindas sacadas. E há um momento do dia, meio mágico, em que é possível se sentir até uma certa paz ao se pousar o olhar no burburinho de gente que tenta se deslocar no espaço exíguo que as obras do VLT deixaram aos pedestres. Sim, ainda tem isso: a Sete de Setembro, mesmo não sendo das ruas mais largas da cidade, vai ser caminho dos bondes sem trilhos aparentes que já andam sendo motivo de  piada entre seus frequentadores:

“Veículo Pesado sobre Trilhos, é como deveria ser chamado”dizem. Qualidade de vida? Bem-estar? A gente vai tentando buscar com base no humor mesmo, porque se for contar a poeirada e a zoeira da obra, a Sete de Setembro estaria mesmo é amargurada…

Se você, caro leitor, está me achando dramática, quero lembrá-lo de que o cronista João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, incensado contador de histórias sobre a vida da cidade, em “A alma encantadora das ruas”, escrito em 1908, afirmou que as ruas têm alma. Por que não sentimento?

“Ah! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, epiléticas, esnobes, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes que ficam sem pinga de sangue”.

Se eu fosse escolher um desses atributos para a Sete de Setembro, talvez fosse sinistra. Às vezes é depravada, às vezes ambígua. E, sim, ela também tem alma. Na verdade, no trecho que se tornou meu conhecido, ela é mesmo quase um bairro.

Para alguns, a Sete de Setembro carioca (há outras em estados diferentes) é a “rua dos cabelos”. Há quase uma dezena de lojas que vendem cabelos humanos para compor um estilo diferente. Moças com apliques tentam estimular o comércio, desaquecido por causa das obras, oferecendo os produtos às mulheres que passam de um jeito muito peculiar:

“Cabelo, meu amor? Quer fazer?”

Restaurantes a preços populares ajudam a povoar a rua das 11h às 14h e as obras da Prefeitura criaram uma espécie de laço entre os comerciantes. Há esperança de que a rua seja valorizada depois de a obra pronta, há temor de que as obras encalhem.  O Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) virou quase um personagem. E, neste sábado (28), como previamente avisado pela Prefeitura, mais uma estação de energia para o trem foi instalada bem ali, na Sete de Setembro.

A diferença entre o VLT carioca e o de outras cidades é que o brasileiro não terá cabos suspensos para transmissão de energia, uma vez que trabalha com base em um mecanismo que permite ser energizado a partir de pontos distribuídos ao longo da linha.

Eu estava lá na hora em que a instalação começou. O Carvalhão – potente içador mais conhecido dos cariocas quando eleva celebridades aos picos dos carros alegóricos – e vários homens de capacete branco, deram um movimento diferente à manhã de sábado na Sete de Setembro. A Prefeitura avisou dias antes que podia falar água e, de fato, faltou em alguns estabelecimentos comerciais. Três contêineres pesando de 12 a 20 toneladas cada um, foram içados. Aqui e ali ouvia-se um lamento:

“Acabaram com a ruazinha verde!”

A rua verde era um beco que ligava a Sete de Setembro à Rua da Carioca, onde bons empreendedores montaram um quiosque para vender plantas ornamentais. Muitos restaurantes das imediações buscavam lá inspiração para decorar seus salões. Era também um ponto de respiração, uma alternativa verde ao cinza urbano. Mas, com o avanço da obra, a Prefeitura pediu, os donos se afastaram e agora vendem plantas num espaço menor, que dá entrada apenas pela Rua da Carioca.  Foi-se a ruazinha verde, que agora ostenta os contêineres içados pelo Carvalhão.

Por segurança, os pedestres precisaram parar alguns minutos durante o içamento, no sábado, e o burburinho de sempre se calou. Acompanhávamos, olhos grudados no céu, aqueles monstrengos de metal que, uma vez no céu, pareciam até leves. Aproximei-me de um dos dirigentes da empreitada e fiz a pergunta que todos deveriam estar se fazendo:

“Qual o perigo de um desses não acertar o lugar e cair?”

A resposta veio certeira:

“São especialistas. Estão acostumados a içar plataformas de petróleo, equipamentos muito mais pesados. Isso aí, para eles, é água com açúcar”.

Mais tranquila, liberei meus pensamentos. Vivíamos ali um momento que iria se eternizar. Pessoas que nem se conhecem verdadeiramente, agora estão unidas por terem assistido a um marco histórico da cidade do Rio de Janeiro, o dia em que contêineres que vão energizar os trilhos do VLT foram içados para a ruazinha que fora verde. Não é a primeira, certamente não será a última grande transformação nessa cidade que virou vitrine, mais voltada ao desenvolvimentismo e ao capital do que ao bem-estar das pessoas que aqui vivem.

Curiosa, busquei informações sobre a própria Rua Sete de Setembro. Ela surgiu de um caminho aberto para a passagem de um cano de pedra que dava vazão às águas da Lagoa de Santo Antonio, um banhado que existia onde hoje é o Largo da Carioca. Por causa disso, foi chamada de Rua do Cano até 1856, quando virou Sete de Setembro. O duto de pedra e cal, na verdade uma vala, foi aberto em 1646. Ligava a vala ao mar, junto ao Terreiro do Carmo, atual Praça Quinze. E foi criado porque os franciscanos do Convento do Carmo se queixavam muito da sujeira e dos mosquitos.

É tudo o que consegui descobrir da Sete de Setembro. Mas, revirando aqui meus arquivos, reli anotações que fiz sobre um seminário que assisti em 13 de maio do ano passado  no Museu do Meio Ambiente, onde a arquiteta e urbanista Margareth da Silva Pereira falou sobre a paisagem como relação entre homem e natureza. Na Convenção Europeia da Paisagem, contou-nos Margareth, está escrito que a população tem que ser consultada antes de qualquer mudança na paisagem à qual ela tem acesso diário. Porque cidade, disse ela, não é só materialidade, não é só forma e edifícios, e carros e parques.

“Cidade é uma relação complexa entre matéria e a sociedade que vive nela”.

A Rua Sete de Setembro, que nasceu vala,  ofereceu durante anos e anos, aos seus frequentadores, a garantia de um cenário estático.  Quem lê Gilles Deleuze sabe que, na teoria dos filósofos da diferença, a hegemonia é a garantia para a sustentação do capitalismo. Ele precisa de corpos dóceis,  que se acostumam, que não questionam, que se adaptam bem às representações. Mas, quando preciso para alimentar seu desejo de desenvolvimentismo, isso cai abaixo. Graças às obras do  VLT, a centenária Sete de Setembro anda vivendo momentos intranquilos, à espera da apaziguadora rotina.

 Crédito das fotos: Amelia Gonzalez

Fonte: G1